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segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Descompasso

Era um triângulo amoroso, não consentido. Eram dois que sabiam de três e um que sabia de dois. Era uma outra era. Se se chamassem João, Maria e José diria que João amava Maria e comia José; José amava João que comia Maria; Maria não comia ninguém, mas não porque era Maria, não tinha libido. E assim viviam.
José nunca contou de João, era um caso escondido. Um relacionamento sério não declarado. João vivia com Maria e com seus filhos. Filhos mal comidos, criados por Maria enquanto João comia José. E Maria comia abacate: abacate com açúcar, abacate com mel, abacate com anilina.
João trabalhava num escritório de advocacia, ganhava dinheiro e desculpas do porque de não voltar cedo para casa. João trabalhava sem horários fixos, era senhor de si mesmo e não precisava fugir de casa. Maria fugia da rua, escondia-se atrás das cortinas, do fogão da empregada, do rosto preocupado dos filhos. Vivia a desenhar abacates: abacates com criolina, abacates com gasolina, abacates mal acabados.
José dormia de manhã, transava de tarde, saia de noite. João trabalhava de dia e transava de tarde, de noite e de manhã quando conseguia uma nova secretária. Maria transava de noite, quando lhe permitia a libido.
Maria não era triste, sempre havia sido deprimida, mas o ansiolítico combinado com o antidepressivo e com o novo remédio para úlceras impedia a tristeza, impedia a felicidade, impedia o assombro. Nunca soube de José. Preferia ignorar o que não sabia e até o que sabia. Não crer descrê a verdade.
José vivia o momento, o insight perfeito. Amava o homem casado, amava a vida de amante. Adrenalina em mesa de sinuca.
João estava ali, sendo o que era, sem pesar prós e contras. Vivia à mercê do vento e do inconstante. Inconstante que se tornava constante. A rapidinha da manhã, o almoço escondido, o sexo com José, a conversa com os filhos, a comida na Maria.
Atrás do fogão da empregada, os abacates.
João trabalhava demais, de menos, demais, de menos. Dependia de pra quem, quando ou seu temperamento. Num dia trabalhou demais, para todos seus casos. E voltou pra casa com olhos semicerrados de cansaço. Enquanto atravessa uma rua movimentada a passos lentos foi surpreendido ao esbarrar em uma ladra. Uma ladra que no susto disparou sua arma. E João caiu, fechando os olhos semicerrados que nem conseguiram se abrir para mostrar o espanto da ida de sua alma.
Maria comia abacates enquanto recebeu o fatídico telefonema. Com a notícia teve de mudar de vida. Largou os adicionais, passou a comeu apenas abacates. Reduziu nas toxinas e se viu dona de si e de seus dias.
José ainda espera pelo telefonema no final da tarde. José espera ser fudido em seu não horário livre. José espera saber a que horas sai seu caso especial. O telefone só dá desligado, pelo escritório ele não passa mais, não almoça mais nos locais escondidos. José espera pela alma de João, para que tenha mais um sexo épico, com quem nem sabe se está ou se foi. José espera por uma única ligação, nem que seja pra dizer "nunca mais". José espera. E a todos que encontra na rua ele diz: "me come?".

Flora S.